quarta-feira, 26 de novembro de 2014

O Resgate da Figura do Cacique Nheçu


Tempos atrás fiquei sabendo da existência de uma associação chamada Nheçuanos, cujo nome é uma referência ao cacique guarani Nheçu, responsável por ordenar o assassinato dos padres Roque Gonzales, João de Castilhos e Afonso Rodrigues, ocorrido no início do séc. XVII aqui na região das Missões. O objetivo desta associação é fazer a revisão histórica da 1ª fase das missões jesuíticas e o resgate da figura do cacique.

Sempre fico bastante receoso quando alguém vem com esta conversa de revisar a história, por ser algo que costuma ser feito com más intenções, mas desta vez me obrigo a concordar com a proposta.

O índio no Brasil sempre foi retratado como uma figura infantilizada, idílica e pacífica, sem vontade própria e facilmente manipulável por qualquer um que lhe impusesse algo. Uma mistura do bom selvagem de Rousseau com o zeloso Peri de José de Alencar, duas figuras ficcionais cuja fusão não poderia resultar algo condizente com a realidade.

O que haveria de tão diferente neles para que estes não agissem como qualquer outro ser humano, passíveis tanto de acertos quanto de erros? O que os faria imunes a sentimentos como paixão, raiva, inveja e vaidade,  a pretensões de expansão territorial e de acúmulo de poder e riquezas? 

Com a instalação da missões jesuíticas em seu território e consequente conversão de muitos guaranis à fé cristã, Nheçu viu seu poder diminuir. E é uma grande injustiça julgar sua reação com os parâmetros contemporâneos de diplomacia. O cacique agiu como era o costume de sua tribo e, utilizando as prerrogativas que tinha por ser a autoridade maior daquela terra, decidiu por fim à vida daqueles que se mostraram um incômodo para ele, até então o grande chefe desta região. Novamente, não há motivos para retratar o que se seguiu como sendo uma brutalidade: os padres tiveram o destino que qualquer inimigo dos guaranis teria em situação semelhante. Não é correto questionar a ausência de um tribunal com direito à defesa em uma cultura onde as decisões eram monocráticas, assim como não faz sentido questionar a pena capital em detrimento a penas mais brandas, como o desterro, pois estaríamos avaliando a questão segundo códigos morais que eram estranhos a eles. 

"Senta aqui, Padre! Que tal uma conversa para superarmos nossas diferenças?"

Outro mito muito divulgado é que os índios foram obrigados a abrir mão de sua cultura, e este episódio é uma grande oportunidade para desmascarar esta mentira. Com o assassinato dos jesuítas, os guaranis estavam livres para voltar ao seu modo de vida anterior, sob o comando de seu líder. Mas não foi este o desejo da maioria: de modo totalmente voluntário eles se revoltaram com o ocorrido e rapidamente subjugaram os poucos índios obedientes ao cacique. Diante deste quadro, Nheçu abandonou aqueles que ainda lhe eram fiéis e fugiu, e nunca mais se teve notícias deles.

É por isso que eu aplaudo a ideia de resgatar a figura de Nheçu. Despindo-o de qualquer contorno mitológico, estaremos diante de ser humano como qualquer um de nós, cujos atos dependiam de suas próprias decisões, das tradições de seu povo e do contexto histórico no qual ele estava inserido. Durante séculos, o cacique guarani foi retratado como um chefe bárbaro e sanguinário, sendo esta uma acusação descontextualizada por se basear em padrões morais e culturais que não os seus. É bom que as pessoas saibam o que realmente aconteceu. Na verdade, não é bem o caso de revisar a história, mas sim compreender realmente quem foram seus personagens.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Há caracóis.

Admiro quem consegue se expressar com objetividade, fazendo uso de poucas palavras. E este é um dos motivos por ter sido prontamente cativado por um cartaz muito simples que vi com frequência pelas ruas de Lisboa, na porta de muitos bares. Uma frase simples, apenas duas palavras, sujeito inexistente, verbo transitivo direto e objeto direto, ornamentada com uma simpática figura desenhada a mão.


Simples, direto e objetivo. As duas palavras transmitem toda a mensagem em sua plenitude. O desenho também tem sua importância, é um belo reforço no apelo visual, capaz de chamar a atenção de olhos atentos que vislumbram detalhes da charmosa capital portuguesa.

Claro que no instante que vi este cartaz pela primeira vez minha curiosidade gastronômica despertou, soando o sinal de alerta: eu precisava comer aquilo! Já comentei que tenho uma certa compulsão em experimentar pratos diferentes, algo que costumo fazer quando viajo, mas desta vez teria pela frente uma "iguaria" de aspecto nada usual, como nunca antes provara.

Chegamos ao Bairro Alto pelo Elevador da Glória, e sem muito critério escolhi o primeiro bar que dava as boas-vindas aos seus frequentadores com o dito cartaz. Era uma noite fria, maio e o inverno europeu davam seus últimos suspiros.

Entramos e pedi um imperial (chopp). Ressabiado com o traumático episódios do sarapatel, escolhi a menor porção da prato e, sem muita espera, seu Manuel(?) trouxe até nossa mesa uma generosa quantidade dos moluscos, muito mais do que eu tinha a intenção de comer. Eles eram maiores do que as lesmas que existem por aqui, e comparadas com estas suas conchas apresentavam paredes bem mais rígidas.  


O gosto não era nada de excepcional, e a textura lembrava frutos do mar. Mas um detalhe deixou-me bastante incomodado: as "anteninhas", que na verdade são as haste que dão suporte aos olhos dos bichinhos. A presença delas não apenas tornava impossível dissociar minha comida à repulsiva imagem deste animal vivo, mas também dava a impressão de que aqueles caracóis iriam despertar a qualquer momento, primeiro com movimentos descoordenados das "antenas", depois com suas conchas mexendo-se pelo prato, e por fim com todos eles começando a se espalhar pela minha mesa, saindo em disparada(?) em todas as direções. Alguns voltariam para a cozinha, outros se afogariam nos copos de cerveja dos clientes, enquanto que os mais dispostos ganhariam as ruas, onde os que não fossem atropelados pelo eléctrico (bonde) poderiam chegar até a casa de fado que ficava uns passos dali. No dia seguinte, é claro.

O problema eram mesmo as "antenas". Não sei o quão trabalhoso seria para o cozinheiro removê-las uma por uma, também ignoro se o procedimento alteraria o sabor do produto. Talvez a solução seja o aprimoramento genético, desenvolver uma raça de caracóis sem olhos. Além de melhorar consideravelmente o aspecto visual do prato, algo fundamental numa experiência gastronômica, acabaria com o problema da fuga dos caracóis do seu cativeiro.

Como o sabor não me agradou, deixei mais da metade da porção no prato, satisfeito por ter encarado mais este desafio. Terminei meu chopp e saímos em busca de um bom bacalhau.
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